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Museu da Memória e dos Direitos Humanos: para aprender sobre os horrores da ditadura no Chile

O Museu da Memória e dos Direitos Humanos, ou Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, é um dos museus mais importantes de Santiago. Ele fica bem na frente do Parque Quinta Normal e não cobra pela entrada.

Ele está na lista dos melhores e mais emocionantes museus que eu já visitei, e eu vou te explicar todos os detalhes. Mas já adianto: prepare o psicológico e leve lenços para secar as lágrimas. Caminhar pelas salas e corredores do Museu da Memória e dos Direitos Humanos não é fácil. Mas eu diria que é necessário para qualquer um que se dispõe a conhecer o Chile.

Entrada do Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago

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Museu da Memória e dos Direitos Humanos

Neste post você vai encontrar: informações sobre a história e objetivo do museu, um resumo da ditadura chilena, detalhes sobre a curadoria e as alas do museu, minha experiência no local, uma sugestão de roteiro pela região do museu e dados básicos de endereço, funcionamento e site do museu.

Inaugurado em janeiro de 2010, o museu é “um espaço destinado a dar visibilidade às violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado chileno entre 1973 e 1990; a dignificar as vítimas e as suas famílas; a estimular a reflexão e o debate sobre a importância do respeito e da tolerância, para que esses feitos nunca mais se repitam”.

Entrada do Museu

Para isso, a instalação conta com uma série de recursos para reconstruir esse período da história de forma respeitosa, cuidadosa e responsável. Com 5.000 metros quadrados, o local abriga documentos, cartas, livros, testemunhos orais e escritos, fotografias, materiais jornalísticos e produtos audiovisuais, que compõem a exposição permanente do museu.

Ditadura de Pinochet: de 1973 a 1990*

Mas de que período da história estamos falando? O museu foca nos anos do regime militar chileno, instaurado por um golpe em 11 de setembro de 1973. Nesse dia, o Palacio de la Moneda foi bombardeado e o então presidente, Salvador Allende, cometeu suicídio para não se render às tropas militares.

Os próximos 17 anos foram marcados por graves violações dos direitos humanos, torturas, assassinatos, fechamento do Congresso e proibição da existência de partidos políticos e a adoção de uma política econômica neolibral. Você já ouviu essa história antes, né? Eu gosto de repetir que a América Latina não é só um mero nome para agrupar um certo conjunto de países – por mais que os brasileiros gostem de acreditar que vivemos em suspensão continental.

Mais de 3.000 pessoas foram assassinadas e cerca de 40.000 foram torturadas, além do exílio de quem foi perseguido pelo governo até uma nova Constituição entrar em vigor em 1980. Ela previa a manutenção do mandato de Pinochet até o ano de 1988, quando a população decidiu, por meio de um plebiscito, que queria o fim da ditadura. Patricio Aylwin ganhou as eleições em 1989 e assumiu o cargo em 1990, acabando com esse período sombrio da história chilena.

Uma das exposições do Museu, com uma placa preta listando todos os jornais e revistas autorizados a circular durante a ditadura chilena

Pinochet foi acusado de crimes de violação dos direitos humanos e de enriquecimento ilícito, mas como apresentou um “atestado de debilidade mental”, nunca foi julgado por tais crimes. Ele morreu em dezembro de 2006, mas as cicatrizes da sua vilanidade (que não se sustentava sozinha, é importante pontuar), permanecem até hoje.

Contudo, os anos passam, novas gerações ficam cada vez mais distantes desse período e, aos poucos, as mortes e torturas são esquecidas. E é por isso que o Museu da Memória e dos Direitos Humanos é tão importante. Ele é uma lembrança física da crueldade da ditadura, e grita aos quatro ventos sobre o perigo de esquecer e até demonizar os direitos humanos.

*Informações adaptadas do Brasil Escola e do site oficial do Museu.

O museu em si: curadoria, alas e exposições – permanentes e temporárias

Então vamos voltar a falar do museu? Assim que você chega, se depara com um enorme pátio, que também recebe exposições temporárias. Quando eu visitei o museu, em julho de 2019, havia uma pequena exposição em tótem sobre racismo – uma prévia da mostra que estava acontecendo no terceiro andar, já chegaremos lá.

Tóten com uma prévia da exposição temporária sobre racismo do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago

Térreo

Entrando no prédio, um enorme mapa de fotos preenche nossa visão. Ele é um mapa de ditaduras e outros regimes autoritários, e para além de impressionar com suas imagens e dimensões, ele também é um alento de esperança.

Estão vendo esses quadrinhos na base do mapa? São uma linha do tempo das chamadas Comissões da Verdade ao redor do mundo. Elas são aparatos organizados para investigar e “passar a limpo” os crimes contra os direitos humanos ocorridos em meio a governos autoritários. Por isso, começar a sua visita sabendo que essa preocupação ultrapassa muitas fronteiras é uma ótima profilaxia.

Entrada do Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago, com um grande painel de fotos em formato de mapa mundi

Primeiro andar

Subindo as escadas começamos a encontrar algumas das 18 alas de exposição permanente do Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Divididas em dois andares, elas começam com a mostra “11 de Septiembre de 1973”.

Vista do Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago a partir do primeiro andar

Como vocês podem imaginar, ela reconta o início da ditadura no Chile, desde o bombardeio do Palácio do Governo. Inclusive, há algumas salas de exibições de vídeos, e em uma delas passa o momento em que o local foi atacado e o subsequente discurso do então presidente, Salvador Allende.

Essa ala se divide em três, são a “Fin al Estado de Derecho”, “Condena Internacional” e “Represión y tortura”. O trio antecede a área mais triste e revoltante, para dizer o mínimo, do museu. É a ala “El Dolor de los Niños”, traduzida para “A Dor das Crianças”.

Exposição do Museu com desenho de uma criança, que questiona onde seus parentes foram parar na ditadura chilena

Nada te prepara para ler e ouvir sobre crianças torturadas. Nada consegue segurar as suas lágrimas quando traços infantis aparecem em folhas de sulfite. Eles questionam onde foram parar seus parentes. Ele pedem por favor para que o tio volte para casa. E você se despedaça pelos corredores.

Segundo o levantamento oficial, 153 menores de idade foram mortos em protestos, 40 foram presos e desapareceram e 2.200 crianças foram presas e torturadas. Isso sem contar as crianças que foram presas junto de seus pais e obrigadas a assistir a tortura a qual eram submetidos.

Segundo andar

Com vontade de desaparecer e explodir o mundo, a gente sobe mais um lance de escadas e tenta deixar as vozes juvenis para trás.

Um dos corredores de exposições de documentos do Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago

Enfim, nos deparamos com a ala “Demanda de Verdad y Justicia”, que conta a história de familiares de vítimas e sua luta para denunciar as violações de direitos humanos. Depois dela vem outra intervenção extremamente impactante, a “Ausencia y Memoria”.

Um gigantesco painel, que é visível de todos os patamares do museu, exibe um mural de fotos com as vítimas fatais da ditadura. É um memorial. Com velas, respeito e um silêncio que dura pouco. Porque aquelas fotos falam. E vão continuar nos seus ouvidos por muito tempo.

Painel do Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago com fotos de vítimas fatais da ditadura chilena

As próximas alas são a “Lucha por la Libertad” e a “Retorno a la Esperanza”, dividida em “La cultura”, “El plebiscito” e “Fin de la dictadura”. Por fim, as últimas seções do segundo andar são entituladas de “Justicia”, um espaço interativo onde você pode consultar sentenças judiciais referentes ao período militar, “Nunca Más” e “Más Que Nunca”.

Destaco o último espaço porque ele traz depoimentos de povos indígenas afetados pela ditadura. A gente não costuma relacionar o Chile à sua população indígena, mas basta pisar no país para descobrir que a diversidade étnica chilena é gigantesca (para saber mais, recomendo o Museu Chileno de Arte Precolombino).

Terceiro andar

O último andar é dividido em duas partes. A primeira é dedicada às Arpilleras, um tipo de bordado que era feito por mulheres e registrava vários aspectos da ditadura. A segunda é a seção de exposições temporárias. Como já adiantei, visitei uma mostra sobre racismo quando fui ao museu, chamada “Nosotros y los Otos. De los prejuicios al racismo”.

Ela é proveniente de um museu francês, o Musée de l’Homme, e trata das raízes do racismo a partir de pontos de vista antropológicos, biológicos, sociais e históricos. Eu adorei a mostra e a forma como ela aborda a questão do racismo como um problema estrutural que nasce na categorização. Se toparem com ela em algum museu desse mundo, não deixem de conferir!

Garras invisíveis ao redor do meu pescoço, milhares de dentes afiados contra meus olhos

Eu nunca chorei tanto ou me senti tão mal em um museu, na minha vida toda, como aconteceu nesse aqui. Cada degrau da escada. Cada uma das alas. Os desenho e vídeo e documento e jornal. O ar não conseguia passar pela garganta. Os olhos se esforçavam, mas só enxergavam o sal.

A experiência que esse museu proporciona é essenciamente agridoce. Ela nasce na esperança das Comissões da Verdade, encontra lágrimas de raiva e emoção e ódio no caminho, e termina em um enorme descampado. Onde a gente não consegue dizer se a grama é verde ou cinza. Se a garoa te encharca de água ou de ácido sulfúrico. Ou se a linha do horizonte é o mar ou um muro.

Eu precisei sair de algumas salas várias e várias vezes. Eram lágrimas demais e oxigênio de menos. A dor de todas aquelas vítimas, crianças e adultos e idosos, se infiltra na sua pele. Nada até a corrente sanguínea e te oferece uma amostra grátis dos dias e semanas e anos de sangue patrocinados por Pinochet.

Reproduções de materiais jornalísticos da época da ditadura chilena

Além disso, é impossível não perceber os andares de emoções desabando dentro de si, e também não é tão fácil dissociar a ditadura chilena da brasileira. Porque afinal, elas aconteceram dentro de um mesmo contexto. Movimentos não germinam sem sementes, água e as condições ambientais necessárias. E a gente sente medo. Porque a cada dia que passa, essas sementes são mais e mais espalhadas por aí. Agora, elas estão por toda a parte.

Na mesa de cabeceira do presidente. Na toalha de mesa de domingo da sua avó. Viajando entre estações de metrô e pontos de ônibus. Esperando a chuva cair.

Talvez a grande lição desse museu é que as sementes sempre estarão por aí. E é um trabalho árduo explicitar o passado e manter sua memória viva. Assim como é de suma importância manter a memória das vítimas vivas e respeitadas. Não esquecer e não relativizar. Estudar e debater e não deixar o assunto morrer. A história morrer. Porque esse trajeto só tem um fim possível. E a gente já sabe qual é.

Entrada do Museu com a frase "El Museo es una escuela: el artista aprende a comunicarse, el público aprende a hacer conexiones"

Sugestão de roteiro: Quinta Normal e Yungay

Quer conhecer o Museu da Memória e dos Direitos Humanos? Então pode ser uma boa ideia combinar o passeio com outros lugares legais da região. O museu fica no bairro chamado Quinta Normal, e bem na frente dele fica o Parque Quinta Normal. Lá você encontra vários outros museus incríveis, como o Museu de História Natural e o Museu de Ciências e Tecnologia, e vários outros! Todos estão apontados no mapa, tá?

Mas o passeio pela região não precisa parar por aí. Como boa viciada em caminhadas que sou, principalmente quando viajo, decidi andar desde o Parque até a região do Centro Histórico de Santiago. O resultado? Descobri dois bairros incríveis, que nunca tinha aparecido nas minhas pesquisas!

São os bairros Yungay e Brasil. Eles ficam entre o parque Quinta Normal e o Centro Histórico, e são maravilhosos! Comecei andando despretenciosamente, até que casas lindas e coloridas e grafites e palmeiras e parques invadiram minha vista. Eu fiquei tão encantada com a região, que decidi me enfiar em ruas paralelas. E isso atrasou todo meu cronograma para aquele dia, mas sinceramente? Eu nem me importei.

Enfim, minha parte favorita de viajar é essa. Saber que mesmo com o mínimo esforço, eu vou fazer descobertas incríveis.

Bom, a região estava bem vazia e eu era praticamente a única andando pelas ruas. E a gente já sabe: locais com pouco movimento passam a ideia de violência iminente. Além disso, muitas casas pareciam abandonadas e pouco preservadas. Mas eu passei por alguma situação que me fizesse acreditar nisso, de verdade? Não.

Só que esse senso de preservação me obrigou a deixar o celular e a câmera dentro da bolsa, então não tenho fotos da região. O que é uma verdadeira pena, porque tanta arte e arquitetura histórica mereciam alguns registros.

Serviço

Endereço: Matucana 501, na frente da estação Quinta Normal do metrô.
Contato: info@museodelamemoria.cl
Site: museodelamemoria.cl
Funcionamento: De terça a domingo, das 10h às 18h.
A entrada é gratuita, mas o local aceita doações, e eu aconselho deixar ao menos alguns pesos por lá. Caso opte por um audioguia em português, ele custa 2.000 CLP.