Apresentação

Respirar dopamina

Certas coisas parecem ser inerentes à nossa alma. A necessidade aparece logo cedo e, em um misto de vontade e vício, infiltra nossa pele e infecta todas as células do caminho. Os neurônios as devem confundir com dopamina ou endorfina. E as trêmulas mãos só conseguem se acalmar quando o sistema endócrino entra em ação.

Escrever é uma dessas coisas.

Canetas e papéis eram a perfeita combinação aos meus fotográficos olhos que, desde cedo, procuravam com avidez a composição mais harmoniosa.

Mas eu não queria admirar a fotografia.

Eu queria fazê-la.

Minha avó tinha uma antiga agenda sempre repousada ao lado da televisão. Por meses observei-a com a cautela necessária para arquitetar o plano perfeito. As canetas ficavam na gaveta do móvel do telefone. Eu já sabia como segurar em uma. Conhecia as sílabas e não esperei o aval da professora para aprender a marcar o meu próprio nome. Eu pedi. Pedi para escrever na agenda. Escrevi. Sílabas desconexas, repetições geométricas do meu nome e cópias de frases de jornais.

Tinha seis anos quando fiquei internada. Foram dois dias. Dois intermináveis dias, mas dois dias. O desespero de ficar no hospital só passou quando substituído por outro: o desespero de ficar dois dias sem escrever. Rabiscar. Sentir a caneta machucar o calo no meu anelar. Criar rimas. Respirar dopamina.

Um caderno e uma caneta foram as primeiras coisas da minha lista de necessidades.

Criei a minha conta no Blogger em 2008. Com onze anos recém completos, descobrira o fantástico mundo dos diários virtuais em aulas de produção de texto, com a professora que tem uma enorme culpa pela carreira que decidi seguir. Eu escrevia poemas. Bobos. Fúteis. Ilógicos. Marcava-os em caneta cor de rosa em um pequeno caderno que ganhara na exposição da Clarice Lispector no Museu da Língua Portuguesa. Passei a digitá-los.

Gostava de vê-los expostos. Em uma sensação de guardar um diário a sete chaves e espalhá-las por aí que mantenho até hoje com meu blog pessoal.

Era fantástico. Ler sobre os outros. Escrever sobre mim. Sobre os outros. Sobre qualquer coisa para qualquer um ler. O que antes era um vício sob controle, tornou-se um sério problema a causar-me dores físicas. As mãos tremiam e o coração acelerava. A respiração ficava descompassada e não havia mais equilíbrio, os neurônios queriam o que a ATV não conseguia produzir sem a ajuda da ponta de meus dedos.

Necessidade.

Eu precisava escrever.

Não importava o que.

Nem pra quem.

Nem onde.

Eu só necessitava.

Sete anos se passaram. Já tive um blog sobre esmaltes. Era o meu maior vício de pré-adolescente. Já tive um blog dedicado aos meus textos e crônicas desconexos, aqueles que eu escrevia durante aulas chatas no colégio. Já tive um blog de moda e beleza. Já tive um blog com enfoque literário. Tenho um blog pessoal e de assuntos diversos, mas trancado. Alguém achou uma de suas chaves e eu mandei trocar a fechadura. Agora com uma única chave.

A necessidade de ter um lugar para escrever só cresceu com o tempo e fez-me escrava de meus próprios dedos. Coleciono orgulhosamente alguns pares de calos e uma intrínseca vontade de contar histórias. De relatar minhas opiniões. De falar. Falar com os dedos para que entendam com os olhos. Ou também com os dedos.

Mas eu gosto do plural. Eu sou plural. E o quão irônico seria reservar apenas um vício inerente a alguém que não suporta a mesmice?

Meus avós tinham um sítio em Minas Gerais. O programa era a minha única certeza aos quatro anos. As duas horas de viagem passavam por inúmeras represas, cidades adjacentes e, mais do que isso, passavam por placas.

A primeira vez que eu parei para prestar atenção nas placas foi um marco para mim: uau. Eu já passei por mais de vinte cidades. Vinte cidades. Vinte. Isso é muito! Isso é demais! Eu quero conhecer essas cidades! O que elas têm de legal? Como são as pessoas?

De repente eu queria saber de tudo. Conhecer tudo. Ver tudo. Os mapas da minha sala de aula eram a mais interessante distração. Peru. Que nome legal. Djibuti. Equador. Nova Zelândia. Minhas amigas me achavam estranha – e ainda acham, devo avisar, mas a minha imaginação dizia o contrário.

A ingenuidade de criança pode ter desaparecido aos poucos, a vida nos cobra isso, mas a curiosidade e a empolgação trataram de crescer de forma anormal.

A avidez cresce a cada passagem. A cada cidade. A cada cultura. A cada idioma.

De repente eu tenho planos de vida baseados no mundo lá fora.

De repente a vida tem o seu sentido delineado.

De repente eu precisava falar sobre as minhas experiências de viagem. Não porque eu quero mostrá-las ao mundo.

Não porque eu quero memórias concretas. Mas porque eu preciso. Porque tudo de mais importante na minha vida está marcado em palavras em algum canto de um diário qualquer ou de pastas escondidas no meu antigo computador. E eu não poderia ser injusta com as viagens.

Elas têm marcado minha vida de forma intensa desde 2012 e, em uma adolescência agridoce, elas foram o pouco que sobrou do sabor doce identificado pela minha língua. Planejá-las, pesquisá-las, pensá-las. Tudo me encanta. Poder fugir daqui. Voltar pra cá. Colocar os pés em outras terras. Respirar novos ares. Conhecer o diferente. Em momentos profundamente delicados da minha vida, foram as viagens que me mostraram o caminho.

Elas me colocaram de volta aos trilhos. Elas me tornaram uma pessoa completamente diferente. Elas foram a coisa mais certa e duvidosa que já aconteceu em 18 primaveras da minha vida. Elas foram a solução. E a interrogação.

A sinestesia de vícios tomou conta da minha vida e hoje eu já não consigo mais abandoná-los. Nem deixá-los na mesmice de páginas perdidas do Word. A rotina me cansa. O igual me entedia. Novidades são capazes de transformar uma lágrima a escorrer pela minha face no mais sincero sorriso a organizar esses dentes amarelos.

Eu falaria novamente de vício, mas acredito que a denotação negativa da palavra pode ser substituída por outra da qual gosto mais: paixão. Minha paixão pela escrita já me levou a lugares maravilhosos – perdoem-me pelo trocadilho, então acho que chegou a hora de mostrar outros lugares incríveis a ela.

No fim, estou sempre por aí. Se não sempre, às vezes, quando dá, quando eu posso.

Então, quem sabe, não deixo tudo por aqui também.

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